21.8.10

A maior árvore que se podia imaginar

Um dia, eu vou me esquecer de tudo. Um dia não serei nada além de matéria, e minhas lembranças ficarão perdidas na dimensão das coisas desconhecidas. Talvez alguém leia minhas memórias, e as ignore. Ou as guarde no peito, prolongando pedacinhos da minha história. Talvez alguém as leia para mim, e eu não reconheça. Mas tudo o que eu vivi ficará marcado em mim como fogo na pele, formando a identidade que eu só completarei quando morrer.

Eu lembro dos skatistas da Praça da Paz, e de um prédio que parecia ter uma cesta de bebê na cobertura. Ficava olhando para ela enquanto esperava o pastel que minha mãe pedira chegar, imaginando gigantes tirando a cesta e colocando seus bebês dentro. Acho que nunca saberei o que realmente havia naquele prédio iluminado, uma vez que minha memória estará sempre coberta pela visão de criança.
Quando minha mãe me levava para o trabalho dela, eu ficava num corredor, com uma escada que eu nunca subi, e levava para não sei aonde. Mas desciam muitas pessoas de lá, e elas sempre diziam que eu era uma gracinha, o que era um material perfeito para o segurança, rindo, tirar uma com a minha cara. Ele era o meu amigo adulto, e com ele o tempo passava rápido. Acho que ele era bonito... Queria muito poder me recordar de seu nome.
Lembro de brincar no chão de azulejo branco das casas grudadinhas -a nossa, minha e de minha mãe, era a mais bonita, com suas cores claras e ar fresco. Vivia pintando ou fazendo esculturas com meu adorado estojo de moldes para gesso. Um dia, estava tão quente que meu giz de cera derreteu no chão como açúcar virando calda na panela. Instintivamente coloquei a mão, curiosa, e acabei me queimando. Fiquei com raiva e nunca mais, durante duas semanas, brinquei de giz no chão da varanda.
Quando morávamos lá, às vezes minha mãe me levava à pé para a escola. Passávamos por uma rua que tinha uma árvore imensa -era a maior árvore que se podia imaginar. E, no nascer preguiçoso do sol, ainda clarinho, dissipando timidamente os vestígios da madrugada, uma família populosa de passarinhos compunha a trilha sonora da minha manhã de infância.

Eu era feliz, e eu sabia.

15.8.10

Fios soltos

"-Acho que não esqueço mais o que ouvi.
-Pois é.
-Oh, não! - exclamou Lúcia. - Acabei com tudo? Quer dizer que poderíamos ter continuado amigas, e talvez pela vida toda! E agora acabou!
-Minha filha, já não lhe expliquei uma vez que ninguém sabe o que teria acontecido?"
C. S. Lewis

Não consigo fugir desse eterno descontentamento humano em relação às escolhas que nos levam a caminhos desagradáveis. Não consigo parar de pensar no que teria acontecido se eu tivesse recuado, se eu tivesse avançado. Não consigo porque todas as histórias que ficaram sem fim vão sempre ecoar na minha cabeça, como quando escolhemos entre um lado da bifurcação nunca saberemos aonde a outra estrada levava. Tudo o que eu poderia ter feito, todos os fios que ficaram inacabados no tapete da minha história, ficarão ali, caídos para sempre, sem fazer parte do entrelaçado.

Naquela noite, enquanto todos dormiam, nós sonhávamos acordados. Isolados por nossa ilha de amor em segredo, desfrutando da respiração um do outro. Eu em seus braços fortes, sonolenta e no entanto incapaz de dormir, sentindo seu peito subir e descer tranquilamente, sentindo seu olhar em mim enquanto sua mão gentilmente acariciava meus cabelos. Aquela paz que reinava sobre nossos espíritos... impossível de descrever. Nada mais importava, nada mais existia. Todas as inquietações da mente e mistérios do mundo, calados pelo seu abraço. Toda a frieza e falta de sentimento do homem, toda a imensidão de medos e tragédias, vencidos pelo singelo calor que emanava de seu corpo, me envolvendo como água por entre as pedras do rio. Sentia que o nosso amor podia cobrir todo o universo, ao mesmo tempo que me sentia fora dessa dimensão de espaço. E me pergunto... e se fosse ali, no meio daquela harmonia astral, o meu, dele, nosso primeiro beijo. Se eu tivesse desencostado a cabeça de seu ombro e tocado seus lábios com os meus. Quanto tempo ficamos lá, abraçados, simplesmente coexistindo? Seria suave, pois não tínhamos hora de partir. Teríamos descoberto juntos o desconhecido. Seria pela beleza do momento, e não pela perspectiva da partida. Seria inesperado, mesmo que ansiado. E depois nós poderíamos olhar um para o outro com ternura, ambos com a certeza de que um pertencia ao outro. Trocaríamos sorrisos significativos quando os outros acordassem sem saber de nada. Nos abraçaríamos agradecendo por um ter escolhido o outro. Não nos olharíamos com medo de ser a última vez que isso iria acontecer, mas com uma infinidade de momentos pela frente, a serem vividos de mãos dadas e, quem sabe, bocas unidas.

25.4.10

Garoinha da janela

. . .O céu está pingando. ...
. .. . . de leve . . . . .
. . .. . .. no lago. . .. .
. . Go te jan do . . .
. . Quase nem sinto . ..
. . . . . . O céu .. . . .
. . .. . .caindo . . . ...
. . . . . . . .. .. . . .

6.3.10

As Cavernas dos Dias Atuais

Hoje, com toda a liberdade e variedade que a globalização nos trouxe, podemos até escolher em qual caverna queremos viver. Podemos ver o mundo através da televisão, e conhecer a Índia como um país cheio de pessoas revolucionárias e ricas, condições de higiene e saúde dignas de um país de classe. Nos emocionarmos com as casas que as pessoas ganham por causa da compaixão dos apresentadores de televisão, e ignorar os vizinhos pobres que aparecem felizes da vida no fundo da câmera. Fazer uma pequena doação financeira para demonstrar o quanto os milagres que acontecem – e a sua freqüência quase absurda – fazem sua fé se fortalecer.
Agora, se você é uma pessoa mais cultural, os jornais e revistas são cavernas tão arrumadas que nem parecem cavernas. É tanto ponto de vista criticando e expondo a sociedade que você quase acredita que os interesses da editora não estão envolvidos na verdade da notícia.
Há espaço também para os mais modernos, que passam o dia navegando na internet. Tão simples ver a realidade, conseguir um milhão de informações em um segundo, enquanto nos lugares em que os humanos mais precisam de humanos não tem nem energia elétrica.
E os habitantes de países desenvolvidos – até mesmo os de países sub-desenvolvidos com pinta de desenvolvidos -, que se orgulham da sua ciência, da sua tecnologia. A mesma ciência que mata as florestas, que usa seus animais para empirismo. A mesma tecnologia que produz armas cada vez mais sofisticadas, obtidas através de mais valia descarada e digna de escravidão.
Enquanto o mundo se balança entre os obesos americanos e os esqueléticos africanos, a caverna do cinema enche nossos olhos com aventuras envolventes e romances impossíveis.
A caverna do IDH brasileiro, alcançando níveis de países de “primeiro mundo” e enchendo o país de analfabetos funcionais.
A caverna dos revolucionários, que pagam R$100,00 para ir num show punk e gritar contra o governo e o capitalismo, e de quebra passam numa mega store para adquirir uma tiragem exclusiva de camisetas do Che Guevara.
E o homem vai viajando para além das cavernas na Terra, explorando o universo, sem perceber que a viagem mais difícil é a para dentro de si mesmo; é vencer a nossa própria caverna.